"Nunca pensei um dia
chegar
Te ouvir dizer:
Não é por mal
Mas vou te fazer chorar
Hoje vou te fazer chorar"
Te ouvir dizer:
Não é por mal
Mas vou te fazer chorar
Hoje vou te fazer chorar"
John Ulhoa (Pato Fu)
1 - A Convocação
“Cada uma que me arrumam!”, foi o que pensei sem nada dizer, porque quem “arrumou” foi meu superior imediato. Depois de mais de vinte anos trabalhando com um afinco inquestionável, o desaforado me disse que eu precisava ter mais envolvimento com áreas diferentes da minha. Convidou-me para participar da equipe de Cuidados Paliativos do hospital... Para quem não sabe do que se trata, são profissionais encarregados de acompanhar os enfermos considerados incuráveis, doentes de vida breve. Praguejei contra a função ao receber o convite, que só não recusei pela subordinação e longa amizade com meu chefe, o qual fez seu pedido soar como uma convocação militar, sem me dar a chance de opinar. “Agora vou ser babá de...”, não digo o resto da frase, por arrependimento e pela vergonha que hoje sinto de ter utilizado um termo pejorativo para complementar tão infeliz pensamento. Vergonha que eu senti somente quando comecei a exercer a atividade que, na época, eu repelia, chegando a brincar com amigos ao dizer que eles faziam o pré-velório.
Muito é dito sobre as pessoas que atravessam problemas de saúde e conseguem a cura, fala-se muito também sobre os que tiveram experiências pós-vida, experimentaram a morte, ou foram experimentados por ela, e voltaram do rápido aperitivo que ambos tiveram um do outro, reservando-se o banquete principal para mais tarde. Entretanto, quase nada se diz sobre aqueles que estão à deriva, ao sabor da “banguela” que, por capricho, valoriza em adiamentos sua visita definitiva. Falarei um pouco sobre como vivem, ainda que brevemente, quem na demora da morte se faz paciente.
O que poderia confortar e fazer sorrir quem aguarda o atraso da finalizadora? Muitos gostariam que ela fosse pontual para poupá-los da dor da espera, e é desta dor que eu também passei a padecer devido ao estreito contato com esses pacientes.
Eu tentava entretê-los com conversas, brincadeiras e, na medida do possível, realizar-lhes um último desejo... Um desejo de morte... Sim, de morte, pois para esse tipo de enfermo, os da vida não têm serventia, e os desejos antes aspirados, quase sempre sem variações: amor, sucesso profissional, dinheiro, saúde etc., de nada valiam. Saúde talvez, caso fosse alcançável.
De todos os pacientes que cuidei durante os dois anos nos cuidados paliativos, não soube de nenhum que tivesse alcançado a cura. Assim sendo, não é necessário dizer que entramos em ação apenas quando é caso de óbito quase certo, embora hoje exista uma discussão sobre a aplicação destes cuidados àqueles que não esperam pela morte a curto prazo (tetraplégicos, por exemplo), mas que também não podem esperar pela cura de suas doenças. Mas voltando aos desejos, uma vez refutada a retomada da saúde, reforço que quase sempre nada vale na ponte estreita e de mão única em que caminham os que estão prestes a chegar à outra margem; o que mais buscam são sensações relegadas ao desprezo, ou a pouca importância da maioria dos saudáveis, que visam a atingir alvos sem se importarem com o empunhar do arco, tampouco se os alvejam de forma correta, fazendo de tudo atos rápidos, prazeres momentâneos que não perduram mais do que seu tempo de ação, findando o prazer exatamente no final do ato: logo após um gole, um trago, um orgasmo, ou qualquer outra atividade com tempo de satisfação contado, geralmente tão curto quanto a viagem de uma flecha.
Espero que minha narrativa não deixe em quem a ler a crença na fragilidade da vida, e que possa, ao invés disso, proporcionar a mesma diferente visão que passei a ter dela. Também não me agradaria criar sentimentos depressivos ao contar casos que me proporcionaram experiências além-diploma, e que vão mais longe que a própria experiência médica.
Para alguns, o que digo poderá parecer uma realidade muito dura. Entenderei caso isso ocorra, pois eu mesmo me desliguei da equipe após sentir que, se nela eu continuasse por mais tempo, logo não conseguiria exercer minha função primária no hospital, que era a busca pela cura.
Para iniciar minha atividade complementar, assisti a uma palestra, fiz um rápido curso preparatório, e nada pareceu diferente aos meus vinte e tantos anos de medicina. Eu acreditava já ter visto e ouvido de tudo, julgando-me imune a qualquer estímulo que trouxesse piedade, medo, compaixão e outros sentimentos superados por mim quando eu ainda era um jovem médico. “São somente teorias”, pensei, ao final dos preparativos para minha iniciação. É na prática que os conhecimentos e os sentimentos complementam-se, moldando e habilitando o profissional ao exercício da atividade... Da atividade vem a experiência, os macetes e a tranquilidade do costume. Mas, mesmo com mais de dois anos na função, eu não me habilitei, tampouco me acostumei aos cuidados paliativos.
Antes de começar a falar sobre minhas experiências na busca por algo que pudesse fazer sentir vivo quem esperava pela morte, deixarei claro que quase nada direi sobre as inerências técnicas da minha profissão, que apesar de hoje em dia ser vista com um enganoso romantismo transmitido por uma infinidade de seriados e filmes, asseguro-lhes que ela está longe de ser matéria de entretenimento. A medicina da realidade é um misto de dores, odores, lágrimas, lamentações, agonias e imagens, quase sempre desagradáveis a ponto de chocar quem está acostumado a ver o cotidiano hospitalar pela tela do televisor. Poupar-lhes-ei a visão, o olfato e a audição, quanto aos outros sentidos, perdoem-me, mas se eu tentar poupar meu leitor, a continuação desta narrativa tornar-se-á impossível.
2 - Paulo
— Esqueci-me de trazer o baralho — brinquei com os colegas enquanto tomava café na lanchonete do hospital.
— Então tente conversar com eles — respondeu Lúcia, a mais caxias entre os integrantes da equipe. Era um pouco a desforra de ter na equipe coordenada por ela, quem sempre tratou o trabalho do grupo com menosprezo.
Não era má pessoa, mas de uma rigidez severa demais para meus padrões. Estendia seu comportamento rígido para além do profissional. Pessoa difícil. Logo no primeiro dia, ela me incumbiu de cuidar de um paciente que eu mesmo havia colocado em “estado de espera”. As expectativas dele se findaram em meu laudo. Era paciente de meia idade, uns quarenta anos, queixoso e irritadiço por comportamento natural e não somente pela doença. Eu não sabia ao certo por onde começar; estava acostumado a lidar com quem, de mim, esperava a cura, e nesta diferente função eles não viam em mim nenhuma perspectiva, apenas uma triste constatação: estavam morrendo.
Quando entrei no quarto, Paulo olhou-me com curiosidade, sem imaginar que eu iria substituir o segundo membro da equipe que desistira de trabalhar com o “casca grossa”. Ao perceber de que se tratava minha visita, disse que eu não fiz por ele o que poderia ter feito.
— Tudo que estava ao meu alcance foi feito, tenha certeza disso — tentei explicar de maneira simples, sabendo que seria um equívoco entrar em detalhes técnicos sobre a condição na qual tardiamente ele chegou ao hospital.
— Para mim você não fez nada, mas se quiser fazer alguma coisa, traga-me um copo de café — disse, enquanto o cheiro da bebida preparada no posto de enfermagem, que ficava no térreo, subia e invadia o quarto. Neguei-lhe o pedido, afinal ele estava com câncer no estômago.
— Vou trazer um baralho para jogarmos na próxima visita — respondi, saindo do quarto e encerrando a visita. Aquele era um dia em que, por mais que eu me esforçasse, nada poderia ser feito para alcançar o propósito de meu trabalho. Sem obter resposta, disse-lhe um “Até amanhã!”. A próxima visita seria dali a uma semana, mas ainda não descobri por quais motivos quis vê-lo antes; podem ter sido suas queixas. Acho que desejei fazer Paulo entender imediatamente que eu não pude fazer nada pela sua recuperação. Não digo que esta pressa veio por culpa, mas por uma sensação de que ele poderia morrer pensando que eu realmente não me esforcei para curá-lo, e isto feria profundamente meu lado profissional.
Na visita seguinte, procurando distraí-lo de seu amargor, jogamos baralho. Perdi uma e deixei que ganhasse outras duas partidas, achando que talvez ele pudesse sentir-se melhor, mas ao final das partidas, irritado, disse:
— Você é ruim em tudo que faz mesmo!
Não gostei de sua declaração, mas sentia que ele não estava em condições de
ser contrariado. “Nas próximas partidas eu lhe arrancarei o couro”, pensei.
No início eu acreditava que seu comportamento rude para comigo era devido ao fato de eu constatar que não havia cura para seu caso. Disse-lhe mais de uma vez que ele próprio fora responsável pela situação, devido à demora em procurar tratamento, mas ele se recusava a aceitar a falha; entretanto, o momento não era para discussões, pelo menos para as sérias. Pegávamos no pé um do outro o tempo todo... Eu de maneira mais educada do que ele, que não media palavras e, frequentemente, ofendia-me. Eu procurava ser tolerante e relevar sua rabugice, justificando-a em seu estado clínico. Foi um exercício de paciência nunca antes experimentado como médico. Nesta posição em que eu só poderia cuidar espiritualmente, para não lhe espancar fisicamente, eu precisava, acima de tudo, de muita paciência.
Com o tempo, passei a ganhar no baralho e também a revidar as ofensas, ainda que de maneira moderada. Semanas depois, tratávamo-nos aos “tabefes” e foi dessa maneira que comecei a entender Paulo. Sinto que também foi a forma que, sem que procurasse, ele encontrou para abrandar sua revolta. Para ele, discutir era uma necessidade que fazia gosto e falta. Então um sempre apontava as falhas do outro, não limitando nossas conversas somente à relação médico-paciente. Às vezes eu me perguntava se não estaria cometendo um erro, dando-lhe tamanha liberdade, logo eu que sempre fui de trato impessoal e objetivo com meus pacientes. Não obstante eu tivesse fama de brincalhão entre os colegas, também era conhecido como coração de pedra. Para a maioria, era uma incógnita essa minha dualidade no ambiente de trabalho, mas para mim era fácil de entender este comportamento paradoxal: eu era uma pessoa descontraída, porém não gostava do estreitamento de minhas relações profissionais; não seria nada difícil de compreender se eu não fosse tão extremista: sério demais no consultório e brincalhão em excesso fora dele. Eu mesmo admitia que eu era duas diferentes pessoas dentro do hospital.
Algumas vezes eu me revoltava ao ver colegas serem tratados por seus pacientes de maneira que beirava o desrespeito, depois eu aproveitava para infernizá-los na lanchonete com minhas piadas, muitas delas infames. Por ironia, três vezes por semana, eu passei a ser achincalhado por um chato que reclamava até de eu ir trabalhar sem me barbear.
— Um médico que não cuida nem da própria cara deveria ser proibido de tratar de um ser humano.
— Quem disse que você é um ser humano? — perguntei, sem nenhum acanhamento quanto a seu companheiro de quarto, ou algum enfermeiro que pudesse ouvir nossa conversa, que mais se parecia com uma discussão. É lógico que eu nunca ficava sem ouvir respostas tão grosseiras quanto as minhas, porém era disso que ele gostava. Quando não havia ofensas nem queixas, sentia-o triste e, estranhamente, eu também me entristecia. Eu chegava a provocá-lo, mas ele dava de ombros, e as visitas nesses dias eram rápidas e um pouco frustrantes. Ainda que eu não fosse devedor, sentia que, naqueles momentos, a parcela do pagamento pelo laudo que assinei não era paga. Sem peleja, sem alívio... Essa foi a psicologia que adotei para Paulo: fiz-me saco de pancadas que também revidava, para que ele batesse com mais força ainda.
O motivo de Paulo passar seus últimos meses no hospital era em razão dele ser solteiro e de sua família, da qual ele não queria nem ouvir falar, ser do norte do país. Ninguém nunca viera visitá-lo e parecia não ter amigos. Não era fácil ter um amigo como ele. Descobri que eu havia me tornado o único após uma visita em que ele me disse ofensas mais pesadas do que eu podia tolerar. Disse-lhe que outro médico da equipe daria continuidade ao meu trabalho. Ele se calou por um instante e seu semblante mudou:
— Não me traga aqueles burocratas de novo. Não tem graça nenhuma brigar com eles.
— Trarei um chimpanzé para fazer-lhe graça — respondi, constatando em sua expressão e palavras que seria daquela maneira rude que ele deveria ser tratado até seus últimos dias.
— E o que você pensa que é? Chimpanzé por chimpanzé... Além do mais, enquanto você está aqui outros pacientes estão mais seguros — respondeu, arriscando perder o amigo, mas não a contenda.
Na acidez de nossas discussões aterrorizávamos a todos que nos ouviam. Se fossemos um casal, seríamos daqueles que não conseguem viver sem uma ou várias brigas diárias.
Cada vez que o cheiro de café subia ao quarto, ele me falava horrores, enquanto eu seguia negando com ar de sarcasmo. Como médico era preciso negar o café, mesmo sabendo que minha negativa não o salvaria, mas como amigo eu não queria que ele morresse. Infelizmente o médico estava certo.
As férias de um colega fizeram com que meu número de pacientes aumentasse e eu ficasse quase um mês sem visitar Paulo. A cobertura de férias tomava todo o tempo que eu tinha e mais algum que eu emprestava do que deveria ser reservado ao sono, pois o tempo do lazer já havia sido tomado integralmente.
Às vezes, no final de meu expediente, quando as forças me permitiam, para dar um alô, eu dava uma passada na ala onde Paulo estava. Num desses dias, ele estava terrivelmente pálido, quase sem voz e não queria conversar. A enfermeira entrou no quarto e colocou um forte analgésico em seu soro, pois sentia muitas dores. Não teve ânimo para falar comigo nem quando o cheiro de café invadiu o quarto. Retirei-me e logo voltei com dois copos da bebida. Ao vê-los, a cafeína pareceu animar-lhe antes mesmo de ser ingerida. Ele se sentou na cama e um “Obrigado!” saiu duplamente espremido: pela fraqueza da garganta e pela falta do costume de pronunciar aquela palavra. Bebemos em silêncio. Sabíamos que sua hora estava próxima, e eu imaginava que a proximidade justificava a lágrima que também custava a desprender-se das fendas de seus olhos. Chorar e agradecer pareciam ações novas e árduas para Paulo.
Paulo faleceu naquela madrugada. Eu soube no dia seguinte, ao encontrar outro paciente em seu leito. Não sei dizer com precisão qual era seu último desejo, mas, de mim, sei que ele esperava longas e espinhosas conversas, além de um copo de café. Providenciei-lhe os dois. Minha relutância quase me impediu de realizar seu segundo pedido... Não seria a abstinência da sua bebida preferida que o salvaria, nem a ingestão dela pioraria sua condição. Paulo usava meu laudo apenas para me atormentar, pois no fundo sabia que eu seguia a escola e a experiência de minha longa carreira, mas ele não me perdoaria se eu lhe negasse a bebida até sua morte, afinal ela estava ao meu alcance, enquanto sua cura nunca esteve. Depois da morte de Paulo, solicitei que nenhum paciente com câncer ou qualquer outro problema estomacal fosse colocado em leitos onde o cheiro do café pudesse alcançar.
Pensei em ir ao seu velório, mas antes perguntei à Lúcia o que ela achava.
— Não há nenhuma restrição, embora eu não recomende... O tratamento foi muito intenso. Você se saiu muito bem com nosso paciente mais complicado. Eu não acreditava que isso pudesse acontecer — disse, sem a rispidez que empregava sempre que falava comigo.
Lúcia parecia querer-me na equipe, pois fui o primeiro membro dos cuidados paliativos que conseguiu domar o Paulo, o que fez com que ela mudasse seu tratamento em relação a mim. Antes, outros dois colegas haviam desistido de cuidar do falecido, por não conseguirem assimilar as ofensas que dele ouviam.
De sua janela voltada ao poente, Paulo podia ver o pôr do sol, que a cada dia lhe proporcionava caridosos espetáculos alaranjados. Eu mesmo presenciei alguns, sempre imaginando que poderia ser o último visto por mim daquele quarto. Quais sentimentos carregava Paulo, que a cada tarde poderia estar apreciando o último de sua vida, independente do lugar?
Mandei uma coroa de flores e, em casa, insone, eu me lembrava de nossa última conversa: “Obrigado doutorzinho de merda”, dito sem voz, apenas com palavras sopradas. “De nada caipira dos infernos”, resposta que lhe arrancou um sorriso triste, de quem, pela primeira vez, não tinha mais forças para responder, nem para continuar.
3 - Marcos
Tive uma sensação estranha quando um novo paciente foi colocado por Lúcia aos meus cuidados. Era uma curiosidade indefinida, uma certa ansiedade por conhecer quem eu teria que confortar. Fiquei apreensivo com o que eu poderia fazer por ele antes mesmo de conhecê-lo. Sabia que não era um bom sinal ter compaixão pelo paciente. Eu tinha o perfil do médico moderno, que não escondia nada do enfermo, e o que começava a ocorrer era que eu não queria que ele achasse que morreria em breve, mesmo que ele estivesse certo disto. Esta minha nova postura amedrontava-me como se eu fosse parente do paciente. Fazer dos frequentes óbitos uma rotina familiar, e não profissional, era algo que eu tinha de evitar a todo custo.
Soube que cuidaria de uma criança e, no primeiro dia, assim como fiz com Paulo, levei dois joguinhos para quebrar o gelo: batalha naval e super trunfo, descartando o baralho pela pouca idade do paciente. No quarto, os jogos deram-me a sensação de que eu entrava no Alasca com um pequeno picador de gelo: o garoto quase não podia enxergar, enquanto eu me descobria cego de imaginação por saber disso antecipadamente por meio do prontuário dele e, ainda assim, não ter atinado sobre a inutilidade dos jogos. Deixei-os sobre um leito desocupado e a ferramenta para derreter as calotas foi uma acalorada conversa com o bem humorado menino.
Marcos tinha 11 anos, uma gravíssima leucemia e uma metástase que o deixou com a visão deficiente a ponto de, mesmo de muito perto, não poder enxergar mais do que as formas das pessoas e objetos, sem conseguir definir detalhes do que via...
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